February 19, 2013

ANNIE HALL (Woody Allen, 1977)



Todos os críticos são unânimes na centralidade deste filme no cânone de Woody Allen. É com ANNIE HALL que Allen atinge a maturidade enquanto realizador, sem perder uma saudável anarquia infantil, ainda que mascarada sob as neuroses dos seus personagens. Neste caso Alvy Singer, um stand up comedian. O filme reproduz a sua vida interior, deixando-se invadir por fragmentos da sua psique, da sua imaginação (como a irrupção súbita de uma versão animada em que contracena com uma Diane Keaton/Annie Hall transmutada na Rainha Malvada da Branca de Neve), ao mesmo tempo que Singer revisita – e leva outras personagens a revisitar – o seu passado, narrado como uma infância oprimida pela modéstia económica (a sua família vive sob a montanha russa de Long Island), pelos bullies da escola, e pelas mulheres que, desde a mais tenra infância (Singer é um sátiro precoce) lhe complicam a vida, mas filmada (e olhada por Alvy/Allen) com um tinte nostálgico. Nostalgia que parece ser o conceito operativo do filme, um imortalizar através dos ersatz de Woody Allen e Diane Keaton, do romance que ambos viveram e que terminara sete anos antes.


A reforçar esta ideia, Allen utiliza toda a gramática do cinema para romper brechas entre os espectadores e a diegese, contaminada pela sua personalidade, obrigando-os a uma participação cúmplice na sua forma de ver a vida – e, sobretudo de ver a vida como ela podia ter sido. Se num momento, irritado na fila de cinema pelas perorações de um intelectual académico sobre as teorias de Macluhan, consegue produzir o próprio teórica da comunicação de detrás de um placar para candidamente dizer ao professor universitário que não percebia nada das suas teorias e que não conseguia entender como alguém assim podia dar aulas numa universidade (“Se ao menos fosse assim na vida real”, comenta Alvy voltado para o espectador), noutros recorre a legendas para nos dar a conhecer aquilo que Alvy e Annie realmente pensam quando falam um com o outro, as inseguranças de cada um que podem influenciar de forma calada mas irrevogável a sua relação futura.



O filme abre e fecha com anedotas de Singer que, conforme nos diz, representam a forma como ele encara a vida. O humor, mesmo cáustico, aparece assim como uma saudável catarse do real. Reflectindo ecos do título que Allen originariamente pretendia para o filme – Anhedonia (incapacidade de sentir felicidade) – como reflexo das relações na sociedade moderna, uma das memoráveis tiradas do filme consiste em Alvy a defender a masturbação (“Don’t knock masturbation. It’s sex with someone I love.”) como a forma derradeira de solipsismo no amor, uma tradução jocosa do medo do compromisso unilateral numa relação. O filme é iminentemente pessoal, e embora críticos como Danny Peary e Florence Colombani celebrem o espaço (para não falar do título) cedido por Allen à personagem de Keaton (apesar de Peary observar que apenas numa cena Allen não está em campo), a verdade é que essa expansão do espaço narrativo exterior à psique de Singer introduz um desequilíbrio insanável no filme, ao ferir a centralidade da experiência interior de Singer. Embora a utilização do split screen para comparar as experiências de um e outro surja sempre numa proporção de dois terços da tela para Singer, Annie Hall tem uma presença no ecrã – ao mesmo tempo frágil e determinada – que rouba o foco ao filme enquanto olhar obsessivo de alguém tão fascinante como Singer (um paranóico obcecado com conspirações, que não chega a ser tão desagradável como um nerd das teorias conspirativas, mas mantém o sense of wonder da criança que a mãe leva ao psiquiatra porque se recusa a fazer os trabalhos de casa desde que descobriu que o Universo se encontra em expansão. Brooklyn is not expanding”, diz-lhe o psiquiatra, “and will not expand for billions of years”. Mas o mundo de Alvy Singer expande-se – pelo menos até Los Angeles – e a causa dessa expansão é Annie Hall.



É como se Annie/Keaton, uma saloia do Midwest, cultivada em Nova Iorque por Alvy/Allen, que a leva ao cinema e lhe mostra livros e filmes de que ela nunca tinha ouvido falar, retribuísse em género o enriquecimento do espírito. Mesmo se, por vezes, fiquemos com a impressão de que Alvy/Allen considera que os horizontes de Annie/Keaton se expandiram mais do que os dele, deixando-o para trás.  



As cenas filmadas em Los Angeles – as duas visitas de Alvy Singer à California – são cenas cheias de luz e de sol, o multicolorido californiano de Beverly Hills tingido pelo branco imaculado que todos os californianos parecem vestir, expondo de forma clara quão fora de água se sente o peixe nova-iorquino. Mesmo a condução de um dos grandes Cadillacs (em Nova Iorque apenas vermos Woody no carocha de Annie, ou nos yellow cabs) que enchem as ruas Angelinas apenas pode terminar num sucessão de embates noutros veículos e num hilariante nervosismo que leva Singer a rasgar a carta de condução que um agente policial lhe pede que exiba, seguido de uma breve estada na prisão. Por comparação, as cenas de Nova Iorque parecem dessaturadas (mérito da fotografia de Gordon Willis, justamente celebrizado pela paleta de cores de THE GODFATHER), com as raras erupções de cor pontilhando os momentos mais íntimos, como o beijo trocado por Alvy e Annie contra o fundo da ponte de Brooklyn (um cenário que seria revisitado em MANHATAN (1979), no momento mágico em que as luzes da ponte se apagam).


Em última instância, porém, Alvy e Annie são um mesmo animal, faces da mesma moeda, separadas por uma qualquer aberração quântica que Alvy pretende corrigir com a sua primeira peça, onde vemos dois jovens actores, facsimiles de Alvy/Allen e Annie/Keaton, ensaiarem o final feliz que, de certa forma, lhes escapou (“Whatta you want? It was my first play. You know how you’re always trying to get things to come out perfect in art because it’s real difficult in life?”). Annie Hall acaba por triunfar como cantora (durante o filme ouvimo-la interpretar irrepreensivelmente “Seems Like Old Times”), completando assim a sua identidade e assegurando a sua independência. Será coincidência que o seu triunfo como cantora (“singer”) seja idêntico ao apelido de Alvy? Será ela, assim, apenas mais uma manifestação do narcisismo niilista de Alvy/Allen, ou a admissão de que sem ela, Allen/Alvy é um ser incompleto?


ANNIE HALL foi o filme revelação de 1977, arrecadando os Óscares para melhor filme, melhor argumento, melhor realizador e melhor actriz. Um facto bem documentado e referido em qualquer biografia do actor/realizador, é que Allen não compareceu na cerimónia. Os Óscares são entregues sempre à segunda-feira, a noite em que Allen toca clarinete num clube de jazz.

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