February 13, 2013

CITY HALL (Harold Becker, 1995)



CITY HALL marca o reencontro de Harold Becker e Al Pacino depois do subapreciado (e praticamente de culto) SEA OF LOVE (1989) e, com um elenco de primeira grandeza a desenvolver um argumento assinado, entre outros, por Ken Lipper e Paul Schrader (TAXI DRIVER), tinha a obrigação de satisfazer o apetite de qualquer adepto de thrillers políticos. Sobretudo de um thriller centrado na corrupção no seio da Câmara Municipal da Nova Iorque no dealbar do reinado de Rudy Giulliani, e na ascenção, queda e possível redenção de juízes, maffiosi, polícias e políticos. E, no entanto, o resultado final afigura-se-me como um exercício meramente mecânico. Talvez pela abundância de personagens, que diluem a atenção e as simpatias do espectador, o percurso de cada uma delas – pelo menos daquelas que ganham corpo para lá de meros cães de palha – apresenta-se demasiado linear, demasiado… fácil.

 

Al Pacino oferece uma vez mais a interpretação soberba que dele é esperada [e era, ainda, apesar do seu sobrevalorizado e derivativo desempenho no, à data recente, SCENT OF A WOMAN (1992)], incluindo um tour de force de oratória no funeral da criança vítima do tiroteio que despoleta a trama do filme e que, num apontamento que se me afigura puro Schrader, tem lugar contra um fundo religioso, apresentando o mayor John Pappas como um orador na linha de Burt Lancaster no clássico ELMER GANTRY (1960), ao mesmo tempo que parece querer sublinhar a íntima comunhão entre a política e a religião, e como esta última permite que mesmo um homem maculado arrebate o aplauso de uma população que lhe é adversa por mero recurso à retórica bíblico-patriótica. Porém, o poder crítico da cena é esvaziado pelo carácter simpatético do Pappas de Pacino que, ao longo do filme, nos é apresentado como alguém genuinamente bem-intencionado, apesar da proximidade a figuras do submundo do crime e da política. A cena em questão, pedia uma personagem mais cínica e manipuladora, que transformasse a adversidade numa oportunidade através da manipulação das massas; e se essa dimensão de facto existe, encontra-se atenuada pela sensação que transparece de todo o filme de que o discurso proferido, é oportunista, mas é-o apesar da sinceridade com que é proferido, e não por causa dela. E, em resultado, a redenção final de Pappas não surge como custosa, mas apenas como um setback – talvez definitivo – numa futura corrida à presidência dos Estados Unidos. Mas a alma – esse conceito de que os americanos tanto gostam e que é essencial à redenção – não se apresenta como tendo estado alguma vez em perigo.

 

Na verdade, o filme apresenta uma pluralidade de personagens com quem não é difícil simpatizar apesar das suas acções, desde o juiz Walter Stern (Martin Landau), cuja conduta oportunista para passar de uma estafada carreira na advocacia para uma vantajosa magistratura contraria o seu apelido, ao parole officer Larry Schwartz (um Richard Schiff sem barba, pré-THE WEST WING) que paga um preço bastante mais alto pela sua tentativa de endireitar os erros do passado, mas cuja motivação ao longo do filme nunca aparece claramente definida.

 

Uma falta de definição que trabalha contra a intensidade dramática do filme, de tal forma que quando as autoridades policiais procuram manchar a reputação do agente falecido no tiroteio inicial, Eddie Santos, interpretado por Nestor Serrano, numa tentativa de ocultar o acto de corrupção que se situa no cerne da trama, reagimos com indignação mais por reflexo moral do que por o filme nos ter levado a simpatizar com o agente caído, que é pouco mais do que uma cifra, sempre referido em termos contraditórios por terceiros.

 

Uma contradição que o filme procura arguir como um facto da vida nas várias dicotomias que vai desenrolando, contrapondo o bairro pobre do Brooklyn aos jantares sumptuosos quer da Câmara, quer dos Maffiosi, o juiz corrupto à advogada idealista, o agente de condicional corrupto e aquele que manteve a integridade; e fazendo a ponte entre ambos, o deputy mayor Kevin Calhoun (John Cusack): é ele próprio que se nos apresenta em voice-over, sobre uma imagem da Ponte de Brooklyn e um mergulho de câmara nas ruas de Nova Iorque: “The mayor, and he was the best mayor the city ever had, was my boss. And I was his deputy mayor, his right hand man… or his boy… depending on who was talking about me.Em termos religiosos poderíamos dizer que é pela sua alma que ambas as forças, ambas as faces da política e do crime se digladiam. O seu conflito interior é o cerne do filme, a sua divisão entre a atracção da experiência e do poder representados por Pappas e pelas portas que ele lhe pode abrir no percurso até à cúpula do poder em Washington, e o idealismo determinado mas algo serôdio da jovem advogada Marybeth Cogan (Bridget Fonda). 

 

Um e outra são personagens simpáticas, figuras de fácil identificação. No entanto, Bridget Fonda pouco mais faz do que ser bonita e impulsionar a investigação de Calhoun, privada por força do argumento de um papel mais activo na narrativa. É difícil a quem vê o filme acreditar que ela só por si possa resgatar Calhoun da atracção do poder, e quando o consegue por entre sugestões de um romance que desponta, o cliché tem um sabor mais amargo do que o gelado de limão que ela o deixa a comer sozinho quando parece fraquejar na prossecução do objectivo de ambos. No final, cortado finalmente o cordão umbilical que o ligava ao seu mentor, ele permanece como uma promessa de rejuvenação e repurificação da política, candidatando-se, sem sucesso, a uma das juntas de Nova Iorque. É um final que oscila entre o amargo e o optimista, como se indeciso em abraçar o espírito Clinton que estava então a meio do seu primeiro mandato e ainda longe das garras do procurador Starr.

 

Assinado por nada menos do que quatro argumentistas – para além dos referidos Ken Lipper e Paul Schrader, também Nicholas Pileggi e Bo Goldman tiveram o seu dizer, CITY HALL resulta não só mecânico como estéril. Ao completar o seu voice over inicial, já citado, Calhoun diz-nos “But in Brooklyn something else was going on that would change everything”. Uma sentença agourenta que evoca ecos de Watergate, a pedra-de-toque de todos os thrillers políticos desde 1974 e ALL THE PRESIDENT’S MEN (1976). Mas o único que acontece em Brooklyn é o passado a alcançar o presente, uma vez que o detective Eddie Santos é abatido enquanto prossegue uma investigação que tem por objecto o mesmo acto de corrupção que move toda a narrativa. Um acto – a concessão de liberdade condicional a um pequeno mafioso – que, na sua banalidade, parece insuficiente para abalar o edifício público da forma que o argumento nos leva a crer. Nem no mais puro dos estados ideais. 

 

No meio de tudo isto, devo confessar uma especial simpatia por Frank Anselmo, o presidente da junta de King’s County, e quadro médio da máfia nova-iorquina. Num papel soberbamente representado por Danny Aiello, Anselmo é um político bastante próximo da população – encontrámo-lo pela primeira vez a atender uma velhota que precisa de ajuda para pagar a renda e que acaba por o convidar para jantar em casa, prometendo preparar-lhe o seu prato favorito, em jeito de agradecimento. Ao mesmo tempo, abafa o seu lado negro de homem colado aos interesses imobiliários e aos mafiosos do ironicamente designado clã Zapatti, com uma paixão transbordante pelas composições de Rodgers e Hammerstein, que desta a cantar a qualquer momento, como no enternecedor momento em que acompanha o empregado do restaurante que costuma frequentar em “People Will Say We’re in Love”

 

Quando é chamado a depor, recebe a visita do seu amigo Paul Zapatti (um suave e sinistro Tony Franciosa) que lhe sugere sem meias medidas que deve suicidar-se, acrescentando uma ameaça velada quanto à sua esposa (Roberta Peters), que antes víramos ao lado de Anselmo numa representação de “Caroussel”, ambos acompanhando a letra de cor, como num ritual de muitos anos. Tony Anselmo é a ponte que une os dois mundos e, como tal, é ele que tem de arder. Através de Anselmo o filme mostra-nos a semelhança que existe entre John Pappas e Paul Zapatti. Numa negociação quanto à construção do BankExchange no Brooklyn, Pappas impõe a sua vontade a Anselmo dizendo-lhe: “You’re only a boss, Frank. I’m the fucking Mayor. Mayors rule”. E também Zapatti lhe impõe a última e derradeira vontade que leva Anselmo a rebentar os miolos num desvio de estrada, pontilhando o cinzento da paisagem com uma abstracção de sangue. Tony fá-lo pela mulher, mas acredito que o faz também pela derradeira afronta representada pelas palavras de Zapatti que não acredita que consiga manter a boca fechada: “Here’s the thing. They’ll tell you: ‘Yeah, heah, sure, you have the key to the cell. Go ahead’. But you won’t be able to open it without singing. You’re a singer Frank”




Através da música, da jovialidade harmoniosa de Rodgers e Hammerstein, do colorido acolhedor de “Caroussel, Anselmo lograva furtar-se à sujidade do dia-à-dia, manter uma espécie de dignidade por entre a decrepitude que o ameaçava contaminar. Anselmo é, para mim, a voz do filme, aquele que consegue cabalmente o que o argumento pretendia para Calhoun – redenção. Afinal, era disso que se tratava.

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