Desde o primeiro ao último instante, este é um filme
sobre automóveis. Sobre carros de corrida. Mais concretamente, sobre carros de street racing, modelos comerciais
artilhados com motores híper-potentes e injectores de oxido nitroso. Uma
espécie de tunning glorificado, onde a potência do motor não é medida em
cavalos mas em milhares de dólares. Uma e outra vez, ouvimos referências à
centena de milenas que este ou aquele têm debaixo do capô. Pelo que grande
parte da simpatia que podemos dedicar ao filme derivará necessariamente da
simpatia que possamos votar àqueles que assim falam; e tratando-se, como se
trata, de um filme de Hollywood, ninguém se assemelha aos típicos parolos que
normalmente encontramos nos shows de tunning com os seus carros reluzentes,
rádios ensurdecedores e pindéricos néons (todos eles presentes no filme, mas
nunca tão irritantes como na vida real).
Sob a direcção entusiástica de Rob Cohen, que assume um
gosto genuíno pelo tema tratado – as irresponsáveis corridas urbanas descritas
num artigo de Kenneth Li para a Newsweek
(“Racer X”) – THE FAST AND THE FURIOUS assume-se estilisticamente como uma road opera pós-moderna, ambicionando
antepor à realidade mecânica do automobilismo uma estilização abstracta e
impressionista que servirá como factor de divisão das simpatias da audiência.
Se o assalto inicial a um camião levado a cabo com três Honda Civic se afirma
como um meritório exercício de perícia e deslumbra o espectador com um ballet
automobilístico que evoca a cópula rodoviária estilizada por Cronenberg no seu CRASH (1995), a sequência que define o
filme e a sua estética é a corrida de quatro superchargers por uma das alamedas de Los Angeles, com o tempo e o
espaço da corrida reduzidos a uma dimensão impressionista onde um e outro se
distendem para lá de todo o razoável, como se no funil do hiperespaço. Ao
contrário da referida cena inicial, onde o camião a toda a velocidade hesita em
obedecer à gravidade, parecendo prestes a rebolar de um momento para o outro
como um touro mortalmente estocado, Cohen lança mão para a corrida urbana de um
excesso de CGI que despe a acção de qualquer limite físico e a metamorfoseia
numa afirmação artística gratuitamente pop que nos leva a crer que de um
momento para o outro o ecrã se preencherá com onomatopeias visuais, um grafitti
animado de VROOOM, CRASH, BANGs.
Todo o exercício abraça e glorifica uma cultura marginal
– mais do que marginal, assumidamente criminosa – e, numa opção surpreendente
para um filme de Hollywood, é permitido a essa cultura fascinar o espectador,
suscitar as suas simpatias, lograr a sua identificação. Para isso muito
contribui a cativante e carismática presença de Vin Diesel no papel de Dom
Toretto, um ex-presidiário campeão de street
racing cujo credo é precisamente viver em intervalos de quarto de milha,
tudo o mais relegado para segundo plano face à liberdade que nos diz experimentar
nesse momento. É para por a descoberto a sua ligação à onda de assaltos a
camionistas que transportam carregamentos de valiosos electrodomésticos – no
caso, como nas primeiras temporadas de THE
SOPRANOS, essencialmente leitores de DVD – que Brian O’Conner (Paul
Walker), um agente de polícia, aceita infiltrar-se na comunidade de street racers e acaba ele próprio por
sucumbir ao fascínio de Toretto, um messias do alcatrão cuja filosofia de vida,
simples e dominada por um código de honra primordial, aferido pela transacção
dos títulos de propriedade dos carros apostados em cada pista, se contrapõe
favoravelmente à burocracia, tricas e intrigas que parecem fermentar e
alimentar o quartel das forças policiais – um palacete construído nos anos 50
para Elizabeth Taylor, que serve bem de comentário para o tipo de anti-heróis e
anti-heroínas com que as modernas audiências se identificam. Virginia Wolfe não
tem lugar entre as ninfetas hipersexualizadas que adejam em torno das máquinas
como traças em torno da luz, nem entre as mecânicas sensuais que controlam um
carro musculado com a mesma facilidade com que noutros tempos operavam um
micro-ondas.
O papel de adoçante visual cabe desta feita a Michelle
Rodriguez (GIRLFIGHT, AVATAR) e Jordana Brewster (THE FACULTY), infelizmente servidas por
um papel pouco menos que decorativo perante as vagas de testosterona rica em
octanas que ocupam o ímpeto da narrativa. Nem a inegável beleza física de ambas
é beneficiada pelo olhar mecânico da câmara que apenas ganha vida quando
desliza pelas linhas femininas e luminosas dos carros aerodinamizados, e nem mesmo
as tímidas cenas de sexo, mais castas do que a novela das nove, se esforçam por
arrancar o filme ao castrante PG-13 (M/12), o que, para os seus principais
destinatários, deve ser menos irritante do que seria um limitador de
velocidade.
Perante a passividade do menino bonito Paul Walker, dividido
entre o dever, o fascínio por Mia (Brewster), irmã de Toretto, e o fascínio
pelos automóveis reluzentes e pela enganadora liberdade do estilo de vida dos street racers, o filme pertence totalmente
a Vin Diesel, perfeitamente convincente no papel de pequeno criminoso
cativante, tão à vontade numa oficina ou atrás do volante de um carro, como em
competição com um gangue de criminosos japoneses. Diesel, ainda fresco do
sucesso de PITCH BLACK (2000), um
dos poucos filmes de ficção científica com uma premissa minimamente
interessante que surgiram na sequência do megaêxito de THE MATRIX (1999), é dos poucos actores da sua geração capaz de vender
convincentemente o carisma de Toretto, tão essencial ao final do filme. Pelo
caminho, Rob Cohen e a sua hoste de argumentistas (nada menos do que três)
viciam o jogo a seu favor, quer contrapondo o seu grupo de criminosos (que
recorrem a dardos tranquilizantes) ao violento gangue de Johnny Tran (Rick
Yune), quer apresentando os agentes encarregues da sua prisão (Ted Levin e Thom
Barry) como pouco merecedores da nossa empatia. O jogo é de tal forma viciado,
que no malogrado assalto final (um cliché tão cabeludo como poucos), as
simpatias da audiência irão certamente para o antipático Leon (Johnny Strong)
que um camionista mantem encurralado na frente do camião a tiro de shotgun (Uma cena que pede um tratamento
a la AUSTIN POWERS para explorarmos a perspectiva do camionista que
defende o seu ganha-pão).
Apesar
de tudo, do argumento desconexo e das muitas meadas da trama que ficam por
atar, THE FAST AND THE FURIOUS é um
filme que, visto com o motor em altas rotações e o cérebro em ponto morto, pode
ser disfrutado numa perspectiva meramente sensorial, mesmo por quem tem pouca paciência
para temas hip-hop que badalam repetidamente a paixão pelos motores.
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